ESTADO ATUAL DAS INVESTIGAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA

As primeiras investigações sobre a historiografia linguística do português, ou como é mais conhecida esta disciplina “História das ideias linguísticas”, tiveram lugar a um e outro lado do Atlântico quase simultaneamente. Na década de 1980 as professores Eni P. Orlandi, no Brasil e Leonor Buescu, em Portugal, publicaram diversos estudos sobre a “história do escrito em português” (GONÇALVES, 2006b). Em particular, a investigadora portuguesa se dedicou a análise das obras de Fernão de Oliveira, João de Barros Duarte Nunes de Leão e Pero de Magalhães de Gândavo, enquanto que Eni P. Orlandi examinou a “língua brasileira” e alguns aspectos socioculturais das gramaticas brasileiras.

No artigo intitulado “trinta anos de historiografia linguística do português”, Filomena Gonçalves descreve a trajetória dos estudos historiográficos no Brasil e Portugal (AGUILERA, 1998). A autora põe de manifesto algumas particularidades da disciplina no contexto lusófono e mostra os principais avanços em ambos os países, mas com especial atenção aos estudos desenvolvidos em Portugal.

 Com respeito a Portugal, Gonçalves (2006b) afirma que as principais contribuições dos trabalhos de Leonor Buescu a historiografia linguística foram, sem lugar para dúvida, a recuperação do corpus gramatical português representativo dos séculos XVI e XVII, ademais do reconhecimento da tradição portuguesa no campo de investigação gramaticográficas nacional e internacional. Sem dúvidas, a autora assevera que, em que pese o avanço destas investigações no contexto português da época, os estudos de Buescu apresentavam certa indefinição:

“Maria Leonor Buescu não questiona o status epistemológico dos estudos historiográficos no âmbito linguístico, nem tampouco indaga as vantagens ou desvantagens de atribuir a esse gênero de investigações a denominação de “historiografia linguística”. A autora parece dar por sentido que o termo ‘historiografia’ é consensual, não sendo objeto de definição ou problematização” (GONÇALVES, 2006b, p.733).

Os primeiros estudos dessa disciplina no Brasil começaram a desenvolver-se através do projeto “História das ideias linguísticas”. Esta linha de investigação foi o resultado de um convênio firmado na década de 1990 entre o instituto de estudos da linguagem da Universidade de Campinas (UNICAMP) e a Universidade de Paris VII, pela supervisão de Orlandi e Auroux. A essa iniciativa se incorporaram outras importantes investigações brasileiras das ciências linguísticas.

Atualmente, este projeto trata de explicar o desenvolvimento do conhecimento linguísticos em uma época e em um contexto sociocultural determinados, no contexto do século XX, com especial atenção as dimensões cognitivas, individual e social da linguagem. As bases teóricas provem especialmente dos trabalhos de Kuhn, Koerner, Swiggers, Auroux e Altman. Assim, pois, estas investigações estão mais orientadas para o presente do que para o passado das disciplinas linguísticas.

Sem dúvidas, o convênio entre a universidade francesa e a brasileira favoreceu a criação de outras novas linhas e grupos de investigação, que atualmente representam uma fonte importante no conjunto das publicações linguísticas. O Grupo de Pesquisa em Historiografia da Língua Portuguesa (GPeHLP), coordenado por Neusa Maria Bastos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), por exemplo, tem se dedicado a reflexão sobre a constituição e desenvolvimento da gramática portuguesa no contexto brasileiro desde finais do século XIX e, em particular, investiga a relação entre as gramaticas e o ensino de língua portuguesa.  

Agora bem, é evidente que os primeiros modelos de investigação que introduziram Buescu e Orlandi serviram de base para os estudos posteriores. Os linguistas que seguiram esta primeira geração construíram seu conhecimento historiográfico sobre os mesmos paradigmas estabelecidos por aquelas primeiras autoras, pois continuam dedicando-se a apresentação geral de textos gramaticais e aspectos socioculturais do corpus (AGUILERA, 1998).

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Estes critérios de análise explicam a propensão, comum as duas escolas, de privilegiar a análise do contexto histórico em que se situam os autores e suas obras, frente ao escasso interesse que demonstram pelo estudo das mudanças teóricas e metodológicas que se sucedem na construção das disciplinas linguísticas. Gonçalves (2006b) também reconhece que esta orientação se mantém desde os primeiros trabalhos historiográficos da língua portuguesa e admite, ademais, que muitas investigações atuais, todavia se configuram deste modo:

“[…] Tanto no Brasil quanto em Portugal, a semelhança de muitos outros campos historiográficos, neste se nota assim mesmo a prevalência da historiografia externa sobre a interna, quer dizer, em lugar da história dos dados metalinguísticos as publicações privilegiam o inventário dos textos (gramaticas e vocabulário), a descrição de seu conteúdo e os aspectos da política linguística, como se nota nos trabalhos de Buescu (1983) ou Fonseca (2004)” (GONÇALVES, 2006b, p.739).

No caso do contexto brasileiro, a recepção das novas teorias linguísticas e historiográficas foram quase sempre tardia. A linguística como ciência da linguagem, por exemplo, teve suas base assentadas no século XX através das publicações de Mattoso Câmara Jr. (1971, 1974, 1975), “a quem cabe a autoria do único manual brasileiro de história da linguística, suficientemente abrangente, publicado até a década de 1980” (ALTMAN, 2009, p.125).

As consequências deste atraso se manifestaram desde as primeiras gerações de linguistas através de uma incessante carreira pelo conhecimento das teorias “revolucionárias” e por um intento de recuperar o “tempo perdido” para que o país pudesse ocupar seu espaço na investigação linguística contemporânea internacional (ALTMAN, 2009, p.127). Este empenho pela busca de informação, renovação e assimilação das novas teorias repercutiram no desenvolvimento da linguística.

Sem dúvidas, a superficialidade, a imprecisão, a mescla indiscriminada de teorias, o excesso de informações diversas e a escassez de reflexão caracterizaram inumeráveis investigações linguísticas brasileiras durante o século XX. Sem embargo, talvez na atualidade este panorama tenha se modificado, pois, como afirma Altman (2009), os investigadores decidiram redescobrir suas bases teóricas e, por conseguinte, contribuir para o crescimento e definir o objeto de estudo da historiografia linguística:

“O Brasil parece, finalmente, ter redescoberto o Brasil na medida em que pesquisadores das mais diferentes especialidades tem sido atraídos para a revisão das tradições diacrônicas do pensamento linguístico, aqui ostracizados desde os anos sessenta e, por extensão, para a história da nossa produção linguística, lato sensu, e de suas origens. Neste sentido, nossa historiografia linguística deverá ainda procurar conciliar e/ou resolver as orientações que apenas se delineiam entre a História da Ciência Brasileira e/ou uma História da Cultura Brasileira” (ALTMAN, 2009, p.129).

Com respeito às produções científicas em Portugal, Gonçalves manifesta que são escassos os trabalhos teóricos “em torno ao fazer historiográfico, aos seus supostos metodológicos e práticos, a análise historiográfica e a relação da historiografia com a linguística, a filologia e a história da língua”. A autora afirma, ademais, que esta “ausência de publicações” põe de manifesto um “prejuízo a respeito do status epistemológico da historiografia” (GONÇALVES, 2006b, p.735).

Neste sentido, se pode afirmar que os primeiros estudos historiográficos luso-brasileiros carecem, em geral, de bases epistemológicas sólidas. A recepção parcial e imprecisa de diferentes perspectivas teóricas – europeias e norte-americanas – teve como consequência uma produção díspar, ainda que se tenha dedicado fundamentalmente a selecionar, inventariar e descobrir o corpus de análise.

Para superar estas deficiências, os historiadores atuais trataram de reestruturar as bases da disciplina em suas respectivas comunidades científicas. Um dos primeiros desafios foi especificar a terminologia e estabelecer o uso da “variedade denominativa”. Tanto em Portugal como no Brasil se empregavam termos como “historiografia linguística”, “história das ideias linguísticas”, “historiografia da linguística” para representar diferentes correntes e enfoques da historiografia linguística. Gonçalves (2006b) explica que em Portugal, até uma determinada época, cada denominação representava a afiliação ou bem a escola francesa, ou a anglo-saxã:

“Na segunda metade do século XX, os estudos da natureza historiográfica devem ser reconhecidos como ‘’historiografia linguística’, ‘ideias linguísticas’ e ‘história da linguistica’, denominações concorrentes que transcendem a mera variedade denominativa, chegando a denunciar a afiliação dos autores a certas escolas ou perspectivas dentro do âmbito historiográfico. Exemplo cabal disso é a evidente polarização entre, por um lado, o modelo anglo-saxão, que impulsionou ou deu preferência a ‘historiografia linguística’, (…) e, por outra parte, o modelo francófono (se não francófilo), decantando-se por uma das expressões seguintes: “ideias linguísticas”, “Pensamento linguístico” (…), e por último, “Gramaticografia”, entre si, geneticamente vinculado a produção do gênero metalinguístico conhecido como gramatica” (GONÇALVES, 2006b, p.734).

Enquanto os pesquisadores brasileiros, não há distinção entre os diferentes termos designativos. Altman (2009), por exemplo, destaca que a oposição entre “Historiografia” e “História das ideias” é falsa e manifesta que as distintas denominações podem ser utilizadas como sinônimos:

“No Brasil, ao lado do termo historiografia da linguística, duas outras designações relativas ao campo tem ocorrido com certa frequência: historiografia linguística e história das ideias linguísticas, aparentemente representativas de orientações diferentes que se tem procurado imprimir ao nosso incipiente trabalho e práticas historiográficas. A oposição entre a historiografia ou história das ideias é, entretanto, uma falsa questão” (ALTMAN, 2009, p.129). 

Com respeito à definição linguística, a versão mais difundida entre os estudiosos brasileiros corresponde a proposta de Auroux (1988). Do autor francês se toma a ideia de que a linguística é todo o saber constituído em torno de uma língua, em um momento específico, como produto de uma reflexão metalinguística ou de uma atividade metalinguística não explicita (FÁVERO; MOLINA, 2006).

Apesar dessa concepção se aplica normalmente a análise lexicográfica e gramaticográfica, Fávero e Molina tratam de estender o método de Auroux a outros objetos de estudo, como, por exemplo, as instituições e aos meios de difusão que gerem o conhecimento linguístico. Para justificar estas ideias, as autoras afirmam que o historiador deve projetar os fatos em um hiperespaço que abarca as dimensões cronológicas, geográfica e “um conjunto de temas” (FÁVERO; MOLINA, 2006, p.25).

Por sua parte, Altman (2009) entende que a historiografia linguística é uma disciplina de caráter cientifico que descreve e explica como se produz e se desenvolve o conhecimento linguístico em um determinado período e contexto. A autora destaca também que esta disciplina requer procedimentos metodológicos distintos, como historiografias orientadas para o conteúdo – que se articulam sobre as dimensões internas das teorias linguísticas – e historiografias orientadas para o contexto – que se assentam em teorias que tem como prerrogativa o contexto social, cultura e político – conteúdo e contexto estão inelutavelmente relacionados, por mais que se tenha concebido até agora como metodologias opostas (ALTMAN, 2009, p.128).

A respeito de seu objeto de estudo, a historiografia linguística no Brasil e Portugal estendeu sua análise para as produções menos tradicionais. No Brasil, particularmente, os estudos sobre a “Historiografia canônica” (ALTMAN, 2009) se dedicam ao período posterior a reforma educativa de Fausto Barreto, as publicações com objetivos pedagógicos e a análise dos procedimentos de difusão, instituições e contextos, como já foi mencionado. Outro ramo da historiografia brasileira, a linguística missionária, analisa os diversos registros de autoria missionária em que se documentaram as línguas não indo-europeias faladas nas antigas colônias, especialmente as gramáticas. O êxito desta especialidade é o resultado do interesse pela descrição das línguas exóticas e pela importante representatividade que alcançam estes textos no conjunto dos conhecimentos historiográficos. Atualmente, a linguística missionária constitui uma das mais destacadas linhas de investigação da historiografia linguística.

Em Portugal não cabe dúvidas de que a “Historiografia ibérica” (GONÇALVES, 2006b) desempenha um papel importante no estudo da recuperação e difusão das ideias linguísticas na península ibérica entre os séculos XVI e XVIII. Gonçalves (2005b) também mostra a relevância das investigações relacionadas com a “historiografia menor”, que tem como objeto de estudos os autores e as obras que constituem as fontes indiretas de informação linguísticos, frequentemente marginalizados pela historiografia canônica. A autora afirma que esta especialidade da historiografia linguística trata de “explorar os canais subterrâneos que […] permitem explicar a propagação das ondas transmissoras de teorias e de saberes constituídos à volta das línguas naturais, ajudando a responder à dicotomia teórica entre continuidade e descontinuidade na história do pensamento linguístico” (GONÇALVES, 2005b, p.399).

Por outra parte, são escassas as investigações sobre as metodologias, as bases epistemológicas e os avanços da historiografia linguística no Brasil e em Portugal. Sem dúvidas, caberia aqui destacar os estudos de Altman (1996, 1998, 2009), Gonçalves (2006b), Gartner (1997) e Orlandi (1997, 2001) dedicados a estes aspectos da história da gramática brasileira.

Enquanto os estudos sobre a gramatica brasileira portuguesa dos séculos XVI ao XVIII, podem colocar-se de relevo as contribuições de Gonçalves (2002a/b, 2005 a/b/c, 2006a), Kosarik (2000), Buescu (1978, 1983,1984), Cardoso (2004) e Ponce de Leon Romeu (2000, 2001, 2002, 2003, 2004, 2005 a/b/c, 2006, 2008a/b). Observa-se, sem dúvidas, que a maioria dos estudos dedicados a este período, com exceção de algumas publicações de Gonçalves, Assunção e Ponce de Leon Romeu, se orientam mais para aspectos contextuais e muito raramente tratam de temas estritamente gramaticais. As investigações que prestam atenção a evolução do processo de codificação do português são, todavia relativamente escassas tanto na Gramaticografia brasileira como na portuguesa.

Do mesmo modo que ocorre em Portugal, os investigadores brasileiros também privilegiam o estudo das obras publicadas na segunda metade do século XIX, período denominado “científico” pela generalidade destes historiadores. As duas escolas coincidem, ademais, nas razões que motivam essa predileção, como são a publicação tardia de gramáticas filosóficas e a influência da corrente histórico-comparativista. Igualmente, os aspectos mais analisados recaem na constituição da gramática, a terminologia, o contexto histórico, a importância social e pedagógica dos manuais, as normas discursivas e a questão da identidade brasileira. Sem embargo, pelo geral, os estudos brasileiros tampouco podem considerar-se um modelo de investigação historiográfica rigorosa.

Feito esse debate sobre gramática e linguística, julgamos necessário realizar um salto histórico para os dias de hoje, considerando o tempo presente e o papel da língua na contemporaneidade. Não há perda em concluirmos aqui o debate sobre gramática, ele deve ser retomado em trabalhos futuros e mais detidamente. Nessa monografia, ele foi necessário para dialogarmos com a historiografia da gramatica da língua portuguesa, no Brasil e em Portugal, com o intuito de pavimentar o caminho para o debate da língua no tempo presente, em especial na escala macro de expansão da língua portuguesa no mundo, como veremos no próximo capítulo. 

Esse foi um trecho do meu TCC. Caso queira acesso à bibliografia consultada, entre em contato.


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