Nesse capítulo é nosso objetivo facilitar uma análise sobre a situação atual da política de língua portuguesa e, a partir deste, enunciar propostas estratégicas que inspirem e sirvam de suporte para o desenvolvimento desta política. Em geral, a reflexão que vou desenvolver tem como ponto de partida as seguintes afirmações:
A língua portuguesa se apresenta como um instrumento de afirmação estratégica que transcende sua dimensão linguística em sentido estrito; A projeção internacional da língua portuguesa não se corresponde, nesses momentos, com a dimensão de seu universo de falantes; uma política linguística deve congregar os esforços de seus diversos protagonistas em Portugal e, em um plano que sobrepassa os limites desta intervenção, ser capaz de convocar outros países no marco da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).
Iniciamos esse capítulo propondo uma definição, a noção de internacionalização da língua tem que ver aqui como um processo eminentemente político de afirmação e de diversificação funcional de uma língua no cenário internacional, como idioma usado em vários países, tanto em funções culturais como acadêmicas, mas também em outros usos ou âmbitos com prestígio: ciência, internet, tradução e interpretação, negócios, etc (OLIVEIRA, 2013). Um processo assim convoca, ademais dos próprios agentes políticos que o estado define para este fim, a outros agentes (fundações, associações culturais, artistas, escritores, cientistas, etc.) e exige um trabalho constante, com uma atitude e um plano estratégico.
Nesse sentido, o conceito de internacionalização da língua se refere a presença do português fora de Portugal e dos demais países da língua portuguesa. Essa presença deve implicar a articulação da língua com a cultura, entendendo-se como processo de afirmação dos valores e dos sentimentos de identificação nacional (OLIVEIRA, 2013). Nessa articulação é onde se modela uma herança histórica plasmada em diversos campos e multissecular (literatura, teatro, pensamento, música, etc.); mas também é, nela, onde se inscrevem práticas e agentes culturais (esportes e esportistas, fatores econômicas, comunicação social, moda, desenho, artes plásticas, arquitetura, cinema etc.).
O binômio língua-cultura fundamenta o que diremos na continuação. Em algumas ocasiões, partimos de alguns preceitos comuns evidentes e, em alguns casos, enganosos. A saber: o português é uma língua disseminada por todo o planeta e falada por mais de 200 milhões de pessoas; na Europa é a terceira língua por seu número de habitantes extra-europeus (depois do inglês e do espanhol e com grandes diferenças em relação com o alemão, o francês e o italiano); na África, é a terceira língua mais falada; oitos países em quatro continentes tem o português como língua oficial; um desses países é uma potência econômica de considerável dimensão; o português se utiliza como língua de trabalho em diversas organizações internacionais.
Estas e outras afirmações que são, de fato, objetivamente verdadeiras, alimentam muitas vezes, em Portugal, uma retórica “triunfalista” que, em alguns pontos, é desproporcional com respeito às realidades que convém enfrentar com coragem e sem medos. Por exemplo: Muitos desses mais de 200 milhões de pessoas falantes de português vivem em situações de carência econômica e de desintegração social, cultural e cívica (OLIVEIRA, 2013). Assim mesmo, apresentam índices de analfabetismo funcional elevados. Ademais, alguns países de língua portuguesa tem um peso ínfimo no contexto internacional, o que debilita o potencial de afirmação do idioma, já que este depende de outros poderes, entre o que se podem incluir os poderes econômicos, tecnológicos, científicos e políticos. Junto a sua dispersão geográfica, conjugada com algumas das carências enunciadas, a unidade do português, no espaço transnacional em que ele existe, é algo vacilante. Igualmente, todavia é pouco significativa a presença do português em âmbitos fundamentais, hoje em dia, como a internet ou na produção de software educativo (OLIVEIRA, 2013). O ensino do português no estrangeiro se enfrenta em obstáculos consideráveis devido a capacidade de imposição que tem os demais idiomas. Cabe elucidar aqui também outra dificuldade que atualmente se encontra em vias de superação: a coexistência de duas ortografias oficiais, a portuguesa e a brasileira, a segunda quase sempre em situação vantajosa quando se trata do ensino como língua estrangeira.
Em contraposição desse cenário, a internacionalização da língua portuguesa pode beneficiar-se de diversas circunstâncias favoráveis. Em primeiro lugar, hoje existem espaços em que o português se encontra em expansão por razões históricas e sociais, espaços que devem ser incrementados e que não devem limitar-se puramente ao linguístico (OLIVEIRA, 2013). Em segundo lugar, não pode depreciar-se a importância da intervenção brasileira na internacionalização do português, dada a relevância do Brasil na cena internacional, com uma relevância demonstrada crescentemente nos últimos tempos. Se nos afiançamos nesse afirmação, deve entender-se como um triunfo em benefício de uma causa comum e não como um motivo de desconfiança, talvez proveniente de alguns preconceitos persistentes (OLIVEIRA, 2013). Em terceiro lugar, devemos encarar como circunstâncias favoráveis ao português certas tendências atuais, sobre todo o âmbito da União Europeia, no que compete aos processos de valorização do multilinguismo e do ensino das línguas, fato que tenderá a compensar o predomínio do inglês.
Acreditamos na necessidade de realizarmos considerações sobre a geografia da língua portuguesa fora de Portugal sobre o conjunto dos países conhecidos como “lusófonos” (OLIVEIRA, 2013). As grandes manchas, espaços vazios e os lentos declives que esta geografia mostra interferem na dimensão internacional da língua portuguesa e determinam a marcha de medidas concretas, de estabelecimento de prioridades, de reforço ou de petições de recursos.
Se tivermos em conta as grandes manchas da presença portuguesa no mundo, sobre tudo produzidas pela emigração, se comprova que Europa é o espaço de maior peso, desde o ponto de vista quantitativo: de um total de quase 2.0000 milhões de portugueses (1.921.844) residentes na Europa, a grande comunidade se encontra na França (um pouco menos de um milhão, 949.581), seguida do Reino Unido (350.000), da Suíça (em torno de 150.000; 166.841), da Alemanha (129.696), da Espanha (108.000) e de Luxemburgo (85.000). Na América do Norte radica a segunda zona de intensa presença portuguesa: mais de 1.0000 e meio (1.567.715) de residentes, com quase um milhão (973.300) nos Estados Unidos e um pouco mais de meio milhão (1.393.709) de portugueses residentes, com acentuadas manchas no Brasil (786.500) e na Venezuela (590.000). A África subsaariana registra cerca de 299.996 mil residentes, com números proporcionalmente expressivos no sul da África (274.200). Na Ásia residem 163.333 portugueses e na Austrália, 57.250.
Deliberadamente, o que dissemos até agora se dirigia a uma análise de grandes áreas geográficas e em países concretos. Para isso, seria necessário proceder a uma observação mais detalhada que permitiria entender até que pontos os esforços portugueses, para internacionalizar a língua em países de língua espanhola da América do Sul (excetuando o caso da Venezuela pela presença de uma importante comunidade de imigrantes “lusodescendentes”), são competidores ou aliados da presença do Brasil, especialmente na zona do Mercosul (OLIVEIRA, 2013). Limitar-me-ei a dizer o seguinte: o efetivo crescimento do português, no extremo sul da América Latina, está diretamente relacionado com a dinâmica e com o peso do Brasil nessa zona econômica e não graças à politicas de difusão linguística de responsabilidade portuguesa.
A questão das alianças estratégicas mereceria toda uma reflexão autônoma. No que se refere à internacionalização do português, penso nas sinergias que se poderiam conseguir, se os países de língua portuguesa, com maior capacidade de atuação nesse terreno (nesse momento Portugal e Brasil) conjugam esforços, sempre que for factível, compartilham instrumentos de intervenção(OLIVEIRA, 2013). Há testemunhos que confirmam esta orientação: refiro-me a intervenção de Anna Klobucka em uma reunião de trabalho sobre a promoção da língua portuguesa no mundo, em 5 de novembro de 2007. Segundo essa professora de português da Universidade de Massachusetts em Darmouth e, desde seu ponto de vista, por assim dizer, “exterior”, “é possível e desejável trabalhar conjuntamente com brasileiros em projetos de promoção da língua portuguesa em terceiros países”. Entretanto, nos trabalhos realizados pelo projeto da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (The Portuguese Language Initiative) chama atenção para algo que em Portugal nem sempre se reconhece: o poder econômico do Brasil pode contribuir para alavancar a internacionalização do português e afiança-lo nos Estados Unidos, por exemplo, grande parceiro comercial do Brasil. Sublinhamos que nesses trabalhos as 500 maiores empresas representadas na revista Fortune, 400 tem negócios diretos com o Brasil; e a metade dos negócios norte-americanos na América Latina se situa no Brasil.
Mas este não é um inconveniente para que se reconheça o seguinte: o domínio da cooperação entre os países da língua oficial portuguesa no âmbito da língua é uma das principais tarefas nas quais deve se trabalhar, mas não a única, e é necessário adotar um acordo ortográfico que constitua, um passo necessário, ainda que incompleto por si mesmo, como incompleto vem sendo, em matéria de política linguística, a ação da Comunidade dos Países de língua portuguesa como instância transnacional.
Dito isso, chegamos até três conclusões. A primeira seria indicar que uma política de internacionalização da língua exige uma ação política persistente e estrategicamente orientada (OLIVEIRA, 2013). As prioridades que enunciei tem valor graças ao seu pragmatismo e a sua coerência dentro do conjunto que o formam, e não devido a uma lógica determinada de gigantismo.
A segunda conclusão estaria em mostrar que as denominadas ‘boas práticas’, em outros países, deve-se ter em conta guardadas as distâncias e as proporções. Da análise comparativa dessas boas práticas se derivaram formas de ensino importantes. A terceira e última conclusão estaria relacionada com o fato de evitar medidas uniformes e rígidas em um cenário geopolítico e geolinguistico diversificado e tão vasto. As condições locais (de ensino, de promoção, de difusão) devem assim mesmo ter em conta, motivando o desenvolvimento de opções táticas específicas.
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